As relações com os indígenas na colônia

por Fabio Paiva Reis, autor do site historiacapixaba.com
 

Para falarmos sobre a presença indígena no Espírito Santo colonial é importante imaginar que em todo o Brasil de 1500 provavelmente viviam quase dois milhões e meio de indígenas, divididos em diversos grupos familiares e linguísticos1COUTO, J. A construção do Brasil: Ameríndios, portugueses e africanos, do início do povoamento a finais de Quinhentos. Lisboa: Edições Cosmos, 1998. p. 63.. Desses, cerca de 160 mil, ou 6% do total, viviam no Espírito Santo, um número próximo ao encontrado em São Paulo e Rio de Janeiro.

Não há dúvida de que a principal obra a demonstrar como esses grupos indígenas se dividiam pelo território brasilerio é o Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes, produzida em 1943 pelo pesquisador alemão Curt Nimuendajú2NIMUENDAJÚ, C. Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes [recurso eletrônico]. Brasília: IPHAN, IBGE, 2017. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/indl/pagina/detalhes/1563. Acesso em: 6 jul. 2020.. Esse mapa traz mais de 900 referências de etnias e línguas indígenas que ele reuniu a partir de documentos feitos entre os séculos 16 e 20.

Nele, é possível ver de forma clara que o sertão do Espírito Santo, perto da divisa atual com Minas Gerais e com a Bahia, era ocupado pelos botocudos, divididos em vários grupos pertencentes à esta mesma família linguística. Já no sul, na divisa com os atuais Minas Gerais e Rio de Janeiro, havia os puris. No litoral, estavam os temiminós, que fazem parte da família tupi, a mesma dos índios tupiniki que viviam no litoral. Esses, entretanto, são diferentes dos índios masakari, outro grupo que vivia no litoral e no interior ao norte.

 

Vamos olhar o mapa e, em seguida, conhecer um pouco melhor alguns desses grupos e suas relações com os portugueses nos primeiros séculos da colonização.

Sabe-se que os portugueses inicialmente evitaram sair do litoral para o sertão do Brasil. Seu medo principal era despovoar o litoral, deixando-o livre para outras nações ocupá-lo. Outro problema, entretanto, era que espalhados eles teriam mais dificuldades de enfrentar os índios que resistiam a invasão eruopeia.

O sertão próximo à Capitania do Espírito Santo, incluindo áreas de Porto Seguro, ao norte, e Cabo Frio, ao sul, ficou conhecido pela presença de nativos especialmente desfavoráveis à presença dos portugueses.

No norte, grupos indígenas que se aliaram aos portugueses estavam em constante conflito territorial com os botocudos, também chamados de aimorés. E os próprios portugueses teriam os seus problemas com eles, principalmente depois que, entre o norte do Espírito Santo e sul da Bahia, os portugueses começaram a tentar capturá-los e usá-los como mão-de-obra. O motivo era o pior possível: naquela região a mão-de-obra indígena começou a ficar escassa por causa de epidemias de varíola nas vilas e missões, que dizimavam a população indígena até então intocada pela doença.3MOREIRA LOSADA, V. M. A produção histórica dos “vazios demográficos”: guerra e chacinas no vale do rio Doce (1800-1830). Revista do Departamento de História da UFES, [s. l.], v. 9, 2001. p. 109.

Alguns relatos sobre como eram os botocudos no século 16 chegaram até nós. É necessário prestar atenção, entretanto, para o fato de que o medo que os portugueses tinham desses índios faziam com que as suas descrições fossem tendenciosas.

Um dos relatos, portanto, é o de Pero de Magalhães Gândavo, um cronista e historiador português que esteve no Brasil nos últimos anos do século 164GÂNDAVO, P. de M. História da Província de Santa Cruz (1575). Belém: NEAD: UNAMA, [s. d.]. p. 34–35.. Segundo ele, os botocudos tinham a pele mais clara e tinham estatura maior que outros grupos. Os homens usariam longos arcos e as mulheres um tipo de maça, com as quais combatiam os portugueses e grupos indígenas inimigos. Viviam na floresta sem fazer aldeias ou casas, deixando poucos rastros.

 

Os principais grupos indígenas do Espírito Santo no século XVII, de acordo com o Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes, de Curt Nimuendajú. Veja este e outros mapas em historiacapixaba.com

 

O jesuíta Jácome Monteiro também escreveu sobre eles, já no século 17. Em sua Relação da Província do Brasil, Jácome relata que aquela era uma “gente selvagem, que tinha posto em grande aperto a terra destas partes, por serem mui fortes e mui manhosos em armar ciladas”5MONTEIRO, J. Relação da Província do Brasil (1610). Lisboa: Livraria portugália, 1945. v. VIIIp. 147..

Os conflitos com os botocudos continuaram, mas alguns textos do período dão a entender que os jesuítas foram bem-sucedidos, pelo menos em parte. O padre Jácome escreveu em 1610 que os padres tinham feito paz com eles, “e são tão domésticos agora que na brandura levam vantagem a todo o mais gentio”6MONTEIRO, J. Relação da Província do Brasil (1610). Lisboa: Livraria portugália, 1945. v. VIIIp., p. 402..

 

Este mapa de 1698, feito pelos cartógrafos Andreas Antonius Horatius e Hubert Vincent, mostra a presença dos tapuia, como eram chamados os botocudos e outros povos indígenas que falam línguas de um tronco diferente do tupi. Veja este e outros mapas em historiacapixaba.com

 

Por outro lado, sabe-se que as relações com os botocutos e com outros grupos foram conflituosas por muito tempo em várias partes do Brasil, mas isso não quer dizer que não haviam aliados dos portugueses. Os tupinikis, no litoral central, eram aliados, mas considerados pouco propensos a se tornarem cristãos. Um dos relatos a nos trazer a descrição desses índios é o do inglês Anthony Knivet, um marujo abandonado no Brasil durante incursões do corsário Thomas Cavendish em 1592. De acordo com Anthony, eles tinham “boa estatura” e “razoável aparência”. As mulheres se pintavam com várias cores, com uma fita de casca de árvore no cabelo7KNIVET, A. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens (1625). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008. p. 19..

Outro a escrever sobre os tupinikis foi Gabriel Soares de Sousa, um agricultor e viajanter português que escreveu um Tratado descritivo do Brasil em 1587. Nesse tratado8SOUSA, G. S. de. Tratado Descritivo do Brasil (1587). 3. ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1851. p. 87–88., Gabriel escreve que sua pele era sem brilho e eles eram bons pescadores, caçadores e marinheiros, além de muito bons na guerra. Após conflitos iniciais com os portugueses, acabaram procurando apoio e fizeram paz para conseguir aliados contra seus inimigos.

Já os temiminós e os puris dividiam o sul do Espírito Santo e norte do Rio de Janeiro com os goitacazes e os tamoios, grupos que tinham seus conflitos independentemente dos europeus.

 

Os puris, cuja população era reduzida comparada a outros grupos da região, aparecem em poucos relatos sobre a capitania do Espírito Santo. No final do século 17, o padre Simão de Vasconcelos afirmou que eles podiam ser encontrados perto das minas de cristais e pedras preciosas que os portugueses estavam encontrando no sertão do Espírito Santo9VASCONCELLOS, P. S. de. Chronica da companhia de Jesu do Estado do Brasil, e do que obraram seus filhos n’esta parte do Novo Mundo em que se trata da entrada da Companhia de Jesu nas partes do Brasil, dos fundamentos que n’ellas lançaram e continuaram seus religiosos, e algumas noticias antecedentes, curiosas e necessarias das cousas d’aquelle estado (1663). Lisboa: Editor A. J. Fernandes Lopes, 1865.. O inglês Anthony escreveu que os encontrou apenas nos sertões de São Paulo no final do século 1610KNIVET, A. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens (1625). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008, p. 211., mas sabemos, pelo mapa, que eles habitavam principalmente regiões do norte do Rio de Janeiro, próximos dos índios goitacazes.

Esses goitacazes aparecem em muitos relatos sobre o Espírito Santo colonial, com Gabriel de Sousa escrevendo que eles foram responsáveis por ataques a Reritiba e até mesmo a Vila Velha, nos anos em que Vasco Coutinho estava fora da capitania11SOUSA, G. S. de. Tratado Descritivo do Brasil (1587). 3. ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1851, p. 91–94.. Frei Vicente do Salvador escreveu em 1627 que eles viviam em regiões alagadas, pantanosas, “mais à maneira de homens marinhos que terrestres”12SALVADOR, F. V. de. História do Brasil (1627). [S. l.: s. n.], [s. d.]. E-book.p. 92–93.. Essa era, certamente, uma maneira de desumanizá-los diante dos portugueses.

Por fim, os temiminós seriam descendentes dos tamoios, de quem eram rivais. Sobre eles também escreveu Anthony, que participou de uma comitiva de Martim Correia de Sá, governador do Rio de Janeiro e filho de Salvador Correia de Sá, governador-geral da Repartição do Sul do Brasil.

 

A comitiva de Martim e Anthony buscava riquezas no sertão do Brasil e é dessa jornada o relato do inglês sobre os temiminós13KNIVET, A. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens (1625). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008, p. 88.. Segundo ele, os temiminós eram fortes e bem protegidos, enfrentando os portugueses enquanto podiam. “Várias vezes os temiminós nos atacaram com tanta violência que tememos todos morrer ali”, escreveu. O medo era grande, pois dizia-se que os temimiós eram poderosos, derrotavam tubarões com as próprias mãos e com seus dentes faziam flechas envenenadas, com as quais matavam qualquer animal das florestas.

A comitiva se escondeu em uma aldeia enquanto aguardava reforços que viriam do Espírito Santo. “Os índios temiminós subiam nos muros das aldeias todos cobertos de penas e com os corpos pintados de preto e vermelho, muito feios de se ver”, continuou, acrescentando que, se os reforços não tivessem chegado a tempo, teriam morrido no incêndio que os inimigos começaram.

Os temiminós, entretanto, tinham dificuldades de lidar com os tamoios, como já foi dito. O portugês Gabriel de Sousa escreveu sobre eles14SOUSA, G. S. de. Tratado Descritivo do Brasil (1587). 3. ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1851, p. 109–110.. Em seus relatos, os tamoios eram grandes, robustos, e furavam os beiços para colocar pontas de ossos. Eram excelentes caçadores e bons na guerra. Acabaram aliando-se aos franceses, com a ajuda dos quais conseguiram afastar os temiminós, que foram buscar ajuda no Espírito Santo.

A aliança entre temiminós e o donatário Vasco Coutinho mostra que nem tudo era conflito no Espírito Santo colonial. Também houve relações de reciprocidade. E com essa aproximação, os índios rapidamente se fizeram presentes de todas as formas na vida da colônia.

Os portugueses dependiam dos indíos para a proteção das vilas e aldeias da capitania do Espírito Santo e também para a realização das entradas e bandeiras que buscavam riquezas no sertão. De fato, eles eram os principais responsáveis por garantir a segurança das áreas habitadas pelos portugueses15OLIVEIRA, R. B. D. Aldeamentos jesuítas na capitania do Espírito Santo: ocupação colonial e ressignificação da etnicidade indígena entre os séculos XVI e XVIII. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, [s. l.], v. 6, n. 2, 2014. p. 221..

Por outro lado, as relações entre portugueses e índios nas vilas não era sempre positiva para ambos os lados. Muitos índios foram escravizados nos primeiros anos da colonização – eram os chamados “negros da terra”.

 

Neste mapa de 1630 do holandês Henricus Hondius, vemos um grupo de indígenas em guerra no sertão do Brasil, entre o Espírito Santo e Porto Seguro. Veja este e outros mapas em historiacapixaba.com

 

O Padre Leonardo Nunes escreveu que, nos dias em que esteve no Espírito Santo, no fim de 1549, doutrinou os escravos, que eram tantos que precisavam se reunir em praça pública1624/08/1550: Outra do padre Leonardo Nunes do porto de s. Vicente do anno de 1550, 24/08/1550: OUTRA DO PADRE LEONARDO NUNES DO PORTO DE S. VICENTE DO ANNO DE 1550. In: ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568. Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1931. v. II, p. 57–64. E-book.. O padre Afonso Brás também escreveu sobre esses escravos indígenas, os quais considerava muitos1724/08/1551: Outra enviada do porto do Espírito Santo [pelo padre Afonso Brás], HUE, S. M. (org.). 24/08/1551: Outra enviada do porto do Espírito Santo [pelo padre Afonso Brás]. In: Primeiras Cartas do Brasil [1551-1555]. Rio de Janeiro: Jorge Zagar Ed., 2006. E-book.. Apesar de doutriná-los todos os dias, Afonso se recusava a batizá-los, pois achava que eles eram muito inconstantes e diz que os colonos também confiavam pouco neles. Só realizava batismos de índios quando esses estavam à beira da morte.

“Parece aos homens impossível que [os índios escravos] venham a ser bons cristãos” escreveu Afonso, “porque já aconteceu de os cristãos batizarem alguns deles que tornaram a fugir para os gentios e andam depois ainda piores do que antes”.

Aqui é importante lembrar que este é um sinal da resistência indígena à introdução forcada da cultura cristã em suas vidas. E a resistência era tanta que as pessoas temiam o que poderia acontecer se os índios do Brasil se unissem contra os portugueses: “são tantos e é a terra tão grande” conclui Afonso, “que se não estivessem em contínua guerra e se não se comessem uns aos outros, não poderiam aqui caber”.