Carta de São Vicente, por José de Anchieta

Parte 1

Do movimento do tempo

 

AO PADRE GERAL DE SÃO VICENTE AO ULTIMO DE MAIO DE 15601 Copiada do livro de registro Cartas dos Padres da Companhia de Jesus sôbre o
Brasil cit., fl. 35, em latim. Pbl. Em italiano nos Diversi nuovi acisi, Venetia, parte III, fl. 15072, e, no original anotado, na Coleção de Notícias para a Historia e Geografia das Nações Ultramarinas, da Academia Real das Ciências, Lisboa, 1812, pelo conselheiro Diogo de Toledo Lara Ordoñez, que tirou edição a parte, Joseph de Anchieta Epistola quanplurimarum rerum naturalium quæ S. Vicentii (nunc S. Pauli) provinciam incolunt sistens descriptionem, datada de Lisboa, 1799, in 4°, 3 fl. Não numeradas e 46 p., sendo uma de errata. A versão portuguesa feita por Teixeira de Melo, com o concurso de Martinho Corrêa de Sá, foi primeiro pbl, nos “Anais da Biblioteca Nacional”, 1, p. 275-305, e depois, corrigida, no “Diario Oficial”, do Rio, de 22, 24 e 26 de dezembro de 1887 e 2 e 7 de janeiro de 1888. Novamente traduzida pelo prof. João Vieira de Almeida, foi pbl., com um prefacio do dr. A. C. de Miranda Azevedo e as anotações de Lara Ordoñez, no fasciculo Carta fazendo a descrição das inumeras coisas naturais que se encontram na provincia de S. Vicente, hoje S. Paulo, seguida de outras cartas ineditas escritas da Baía pelo veneravel Padre José de Anchieta, S. Paulo, 1900. – As notas que se seguem, da autoria do dr. Afranio do Amaral, diretor do Instituto do Butantan, dr. Oliverio Mario de Oliveira Pinto, assistente do Museu Paulista, e sr. Pio Lourenço Corrêa, transcritas sem nenhuma indicação de obra, foram especialmente escritas para esta edição, a pedido nosso. Outras, ainda, submetemos á revisão de um técnico do Instituto Biologico de São Paulo, graças á gentileza do dr. Adalberto de Queiroz Teles. Ao concursos dêsses competentes devemos, assim, em grande parte, o comentario ou esclarecimento do que de mais curiosos ou menos claro contém a admiravel carta de Anchieta.

Descrição das coisas naturais da Capitania de São Vicente. – Divisão das partes do ano. – Tempestades. – Disputa com um feiticeiro. – Enchentes dos rios. – Saída dos peixes. – Boi marinho. Narração de uma tempestade no mar. – Entrada dos peixes. Sucuriuba. – Jacaré. – Capivara. –  Lontras. – Caranguejos. Modo indígena de curar o cancro. – Jararaca, cascavel, coral e outras serpentes. – Piolho de cobra. – Aranhas. -Tatoranas Panteras.- Tamanduá. – Anta – Preguiça. – Gambá. – Ouriços.Macacos. – Tatu. – Veados. – Gatos monteses, gamos e javalis. – Lhama do Perú. – Bicho da taquara. – Formigas. – Abelhas. Moscas e mosquitos. – Papagaios, beija-flores e outros pássaros. – Guará e outras aves marinhas. – Aves de rapina. Anhima. – Galinhas silvestres. – Mandioca e “Yeticopê”. – Ervaviva. – Arvores medicinais. – Pinheiros. – Raízes medicinais. Pedra elástica. – Conchas e pérolas. – Espectros noturnos ou demônios. – Raras deformidades entre os Brasis. – Criança monstruosa. – Um porco hermafrodita.

A Paz de Cristo seja comnosco.

Pelas tuas cartas, que ha pouco nos chegaram ás mãos, vimos, Reverendo Padre em Cristo, que desejas (para que se atenda ao voto e desejos de muitos) que escrevemos acêrca do que suceder comnosco que seja digno de admiração ou desconhecido nessa parte do mundo. Conformando-me com tão salutar mandado, cumprirei diligentemente, quanto me fôr possivel, a prescrita obrigação.

Em primeiro lugar certamente (o que fiz de passagem nas anteriores cartas) tratarei desta parte do Brasil, chamada São Vicente, que dista da Equinocial vinte e três gráus e meio medidos de Nordeste a Sudoeste, na direcção do Sul, na qual a razão da aproximação e do afastamento do sol, as declinações das sombras e como se fazem as diminuições e crescimentos da lua, não me é facil explicar; por isso, não tocarei nessas cousas, nem vejo nelas razão para que sejam diferentes do que aí se observa.

Na divisão,  porém,  das partes do ano é cousa inteiramente diversa: são na verdade de tal maneira confusas, que não se podem facilmente distinguir, nem marcar o tempo certo da primavera e do inverno: o sol produz com os seus cursos uma certa temperatura constante, de maneira que nem o inverno é demasiadamente rigoroso, nem o verão incomoda pelo calor;  em nenhuma quadra do ano faltam os aguaceiros, pois de quatro em quatro, de três em três, ou de dois em dois dias, uns por outros, alternativamente, se sucedem a chuva e o sol; costuma contudo em alguns anos a cerrar-se o céu e a escassearem as chuvas, de tal modo que os campos se tornam estereis e não dão os costumados frutos, não tanto pela fôrça do calor, que não é excessivo, como pela carencia de água; algumas vezes, tambem, pela muita abundancia de chuvas, apodrecem as raizes que temos para alimento.  Os trovões no entanto fazem tão grande estampido, que causam muito terror, mas raras vezes arremessam raios; os relampagos lançam tanta luz, que diminuem e ofuscam totalmente a vista, e parecem de certo modo disputar com o dia na claridade; a isto se ajuntam os violentos e furiosos pègões de vento, que sopra algumas vezes com ímpeto tão forte, que nos leva a ajuntarmo-nos alta noite e corrermos ás armas da oração contra o assalto da tempestade, e a sairmos algumas vezes de casa por fugir ao perigo de sua quéda; vacilam as habitações abaladas pelos trovões, caem as árvores e todos se aterram.

Não ha muitos dias, estando nós em Piratininga, começou, depois do pôr do sol, o ar a turvar-se de repente, a enublar-se o céu, a amiudarem-se os relampagos e trovões, levantando-se então o vento sul a envolver pouco a  pouco a terra, até que, chegando ao Nordeste, de onde quasi sempre costuma vir a tempestade, caiu com tanta violencia que parecia ameaçar-nos o Senhor com destruição: abalou as casas, arrebatou os telhados e derribou as matas; a árvores de colossal altura arrancou pelas raizes, partiu pelo meio outras menores, despedaçou outras, de tal maneira que ficaram obstruidas as estradas, e nenhuma passagem havia pelos bosques; era para admirar quantos estragos de árvores e casas produziu no espaço de meia hora (pois não durou mais do que isso), e,  na verdade, se o Senhor não tivesse abreviado aquele tempo, nada poderia resistir a tamanha violência e tudo caíria por terra. O que,  porém, no meio de tudo isso, se tornou mais digno de admiração, é que os Indios, que nessa ocasião se compraziam em bebidas e cantares (como costumam), não se aterraram com tanta confusão de cousas, nem deixaram de dansar e beber, como se tudo estivesse em completa traquilidade.2A essa tempestade volta a se referir Anchieta na carta seguinte (XI), ressaltando os serviços que por essa ocasião prestaram aos indios o padre Luiz da Grã e o irmão Manuel de Chaves. – Cf. S. de Vasconcelos (Cron., 1, 2, n. 86).

Vou entretanto referir um fato, que por si mesmo julgarás mais digno de dôr do que de riso; lamentarás certamente a cegueira e escarnecerás da loucura. Poucos dias depois de se passarem estas cousas, em uma certa aldeia de Indios, a que vim com alguns sacerdotes aplicar a medicina da alma e do corpo a um enfermo, encontrámos um feiticeiro de grande fama entre os Índios, o qual, como o exortassemos muito que deixasse de mentir e reconhecesse um só Deus, Creador e Senhor de todas as cousas, depois duma (por assim dizer) longa disputa, respondeu: “Eu conheço não só Deus, como o filho de Deus, pois ha pouco, mordendo-me o meu cão, eu chamei o filho de Deus que me trouxesse remédio; veiu ele sem demora e, irado contra o cão, trouxe comsigo aquele vento impetuoso, que soprou ha pouco para que derrubasse as matas e vingasse o dano que me causara o cão”.  Assim falou ele, e respondendo-lhe o sacerdote: “Tu mentes!”, não puderam conter o riso as mulheres já cristãs ás quais ensinamos as cousas da fé, escarnecendo de certo da estulticia do feiticeiro. Omito outras cousas porque não são para aqui; menos aquilo que não fôra fóra de proposito para advertí-lo, nem a frase “tu mentes” parece proferida com menos reverência, pois os Brasis não costumam usar de rodeio algum de palavras para explicar as cousas: assim, a palavra “mentes”e outras nesse sentido são ditas sem ofensa alguma: pelo contrário, pronunciam claramente, sem nenhum vexame, as palavras que significam os órgãos secretos de um e outro sexo, a cohabitação e outras da mesma natureza.

A divisão das estações do ano (se se considerar bem) é totalmente oposta á maneira por que aí se compreende; porque, quando lá é primavera, aqui é inverno, e vice-versa; ambas, porém são de tal modo temperadas, que não faltam no tempo de inverno os calores do sol para contrabalançar o rigor do frio, nem no estio para tornar agradaveis os sentimentos, as brandas aragens e os humidos chuveiros, posto que esta terra, situada (como já disse) á beira-mar, seja regada em quasi todas as estações do ano pelas águas da chuva.

Todavia, em Piratininga, que fica no interior das terras, a 30 milhas do mar, e é ornada de campos espaçosos e abertos, e em outros lugares que se lhe seguem para o ocidente, a natureza procede de tal maneira que, se os dias se tornam extremamente calidos por causa do calor abrasador (cuja maior fôrça é de novembro a Março), a vinda da chuva lhes vem trazer refrigério: cousa que aqui acontece agora. Para explicar isso em breves palavras: no inverno e no verão há grandes chuveiros, que servem para temperar os ardores do sol, de sorte que ou precedem de manhã ao estio, ou vêm á tarde. Na primavera, que principia em Setembro, e no estio, que começa a vigorar em Dezembro, as chuvas caem abundamentemente,  com grande tormenta  de trovões e relampagos.

Então, há não só enchentes de rios, como grandes inundações dos campos; nessas ocasiões, uma imensa multidão de peixes, que saem da agua para pôr ovas, deixam-se apanhar sem muito trabalho entre as ervas, e compensam por algum tempo o dano causado pela fome que trouxera a subversão dos rios. Assim, êste tempo é esperado com avidez, como alívio da passada carestia: a isto chamam os lndios pirâcema, isto é, “a saida dos peixes”; por quanto, duas vezes cada ano, quasi sempre em Setembro e Dezembro e algumas vezes mais frequentemente, deixam os rios e se metem pelas ervas em pouca água para desovar; mas no estio, como é maior a inundação dos campos, saem em mais consideraveis cardumes e são apanhados em pequenas redes e até mesmo com as mãos, sem aprêsto algum.3(03) Piracema ou piracê, “monção em que saem os peixes”, conforme definição de B. Caetano (Vocabulario da Conquista, nos “An. Da Bibl. Nacional”, VII), De pirá-peixe e cêsair ou cema-saindo. – Observação de Oliverio Mario: “Propriamente não ha o que retificar na descrição de Anchieta; apenas não se poderá dizer com inteira propriedade que os peixes “saem d’agua para pôrem ovos”, senão que sobem o curso dos rios, á procura das cabeceiras, de aguas mais rasas e remançosas, em que de fato “se metem pelas ervas em pouca agua para desovar”, ao abrigo relativo das causas naturais de destruição”. – V. Agenor Couto de Magalhães (Monografia brasileira de peixes fluviais, S. Paulo, 1931, p. 66).

Finalmente, os grandes calores do verão são moderados pela muita abundancia de chuvas; no inverno, porém (passado o outono que, começando em Março, acaba numa temperatura agradavel), cessam as chuvas; a fôrça do frio torna-se horrivel, sendo maior em Junho, Julho e Agosto; nesse tempo vimos muitas vezes não só as geadas espalhadas pelos campos a queimarem arvores e ervas, como tambem a superfície da água toda coberta de gêlo.  Então esvasiamse os rios e baixam até o fundo, de sorte que se acostuma apanhar à mão, entre as ervas, grande porção de peixes.

Aos 13 de Dezembro, completando o sol sua carreira em Piratininga, chega a maior altura; esse dia que é muito longo e em que não há declinação alguma de sombras, dura 14 horas e não passa além do Sul; daí, porém, volta para o Norte, em cuja retirada sóe ser mais rigoroso o calor e febres agudas com dôres de lado molestam os corpos. O undecimo dia de Junho, que é curtissimo, e no qual o sol está muito afastado de nós, dura (segundo creio) cerca de dez horas desde o romper do dia até o ocaso.4Nota de Lara Ordoñez (1. C.): “Esta maneira de calcular o verão e o inverno é conforme o antigo Calendario, o qual depois, isto é, no ano de 1582, Gregorio XII, Pontifice Maximo, corrigiu, suprimindo dez dias e providenciando para o futuro. Porque, como o ano civil excedesse o solar em 11’, desde o ano 325, no qual se marcou o tempo da celebração Pascoa no Concilio de Nicea, o 1° Ecumenico, os solticios precediam outros tantos dias, os quais cairam realmente, no ano de 1559, a 12 de junho e a 12 de dezembro. Por isso, por causa do comprimento dos dias 11 de junho e 13 de dezembro ou dos passados, ou dos seguintes, similarmente, Anchieta julgou solsticiais os dias 11 de junho e 13 de dezembro. Realmente eles duram, considerando a refração da luz, no tempo do verão, 13 h. 24’; no inverno, porém, 10 h. 36’.”

Até aqui falámos do movimento do tempo; passo agora a tratar de outras cousas.

Fonte:
ANCHIETA, Padre José de. Carta de São Vicente, 1560. São Paulo: Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. 1997, pp.9-13